Senhor, me levantei hoje repleto de alegria.
Tu o sabes, todos os dias da minha vida assim o tem sido.
Poderá o sol não brilhar aqui agora em mim,
Mas as bagas de trigo douradas estão a se dobrar no campo,
Igual querendo reverenciar toda beleza que se estende pelos céus.
E as abelhas, certas de saberem o que fazem,
Flor-a-flor estão a beijar e espalhar o pólen que reproduz a vida.
Eu sei, Senhor, muitas vezes a existência se torna amargo ácido,
Feito um caldo gosmento que entorna e se impregna nas veias,
E minhas horas nessas horas se enchem de desvairo,
Qual fosse eu um sátiro a atirar setas venenosas nas teias do existir.
Então escrevo espinhos, imensos vazios, vertigens, abismos, dores,
Esperanças que se fragmentam pelo espaço-tempo em labirinto
Cacos de vidro que se cravam em minha alma e caminhos
Instantes em que não vejo nem encontro qualquer saída,
Tardes nas quais se esvaem todas as minhas forças
E inúteis se fazem o clamor e as lágrimas desatadas em desalinho.
Mas, vede, Senhor, respirando o sopro de calor do teu vital sopro,
Hoje me levantei feliz, homem feliz que sou, à parte os ventos e moinhos.
Bebi meu café, comi da terra o pão e começou:
Me invadiram as coisas do viver, dobraram os sinos
Trabalho, cores, poesia, jornais, notícias,
Todos nós rodeados e roteados pela tecnologia,
Embarcação que tomamos sem saber a que lugar nos levará.
Internet, facebook, instagram, google, twitter,
A perfeita invenção levando o homem à prisão em si mesmo.
E vi entre as grades da malha virtual enredados,
Sobre o palco o falso brilho de homens que se travestem de poetas da auto-ajuda,
Cães a se proclamarem vira-latas enroupados de humildade,
Quando em verdade o que anelam é serem bem pagos vagabundos.
E não se fazem de rogados, Senhor, de boca cheia falam em nome do amor,
Feito saldo em fim-de-feira com preço baixo se auto-depreciam,
Mas se sabem valor de mercado, aqui e ali pedindo uma ajudazinha,
Cometendo orações em que cospem versos com o nome de Deus,
Aos crentes incautos, viúvas, solitários e abandonadas, aos quais encenam atitudes vazias
Àqueles crentes sem rumo que se arrastam e ao redor deles feito moscas se amontoam ,
Crentes de terem encontrado um lugar para descansar suas carestias.
Então, Senhor, ouço a chuva e uivos de alegria encharcam a minha alma.
E sou um homem feliz porque posso ver e ouvir a chuva cair,
E sei que a chuva não lavará os meus pecados,
Que são muitos e de variadas espessuras e calibres.
A chuva passa, ares limpos e em águas passadas as calçadas,
Diante de outros homens paro, homens preocupados,
Ou mais que pré, na soberba ocupados com Malafaias, Soares,
Waldomiros e Edires, vestidos nas suas alfaias de feno,
Os de fora invejosos dos de dentro com fama e grana entesouradas,
Cada qual com seu discurso na intenção e ardil de comover as pedras,
E outros atacando a bela que brilha na tela acesa da mal falada rede de TV,
Prontos e maquiados para se for o caso nela aparecer sem paga de cachê.
São os Simeões Estilitas a se curvarem aos próprios pés diante da multidão,
Inútil sacrifício de ascetas da ilusão a deitar pelo chão os castelos de areia.
Senhor, levantei-me hoje repleto de alegria,
E descrevi o que no correr do dias vi,
E isso, Senhor, isso não me faz ou me fará menos feliz.
Ver nos homens ser o que são,
Centelha que sou foi me ver no espelho cara-a-cara,
E não obstante eu nada ser, nada posso negar do que vi e vivi.
A chuva voltou a cair.
07.02.2013**
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