GARGALO
Madrugada na grande cidade
Ela já sabe caminho sozinho
Eu e minha solidão enfeitada de chuva
As calçadas molhadas de sombras lucentes,
As pessoas naquele bar amarelo
Felizes à volta das mesas
Cachos de uva dependuradas
Umas às outras grudadas em penca
Na calçada, nos corredores
Bebendo, comendo, sorrindo
Todas as pessoas em cores e ao vivo
E entretodas uma se saindo
Alguma coisa de artista n'aura pregada
Uma maneira despudorada de ser;
Eu logo liguei no movimento
Sentei-me a uma mesa
No canto do bar alguém cantava
Azul blues vestido de samba-canção:
"Você me chuta e eu quero mais
eu peço mais
Você me chama de puta e me escarra
Não importa
Ainda assim pago tua cama
Te dou bebida na boca
Faço da minha carne mercado
Pra te botar na mesa comida
Do meu corpo coberta
Pra te aquecer e dar guarida
Eu sou puta sim
Foda-se o mundo
E você também, meu bem,
Enquanto olha à volta
É o que ela pensa;
Mira a cadeira à minha frente e nela se senta
Cruza as pernas e nelas vejo
Nesta noite amarela dourada
De paredes cobertas de coloridas telas
Planos, skylines, paisagens, cidades,
Curvas geométricas, satélites, favelas
No rosto as maçãs salientes
E as mãos, não tão doces, mas firmes e quentes
De unhas negras pintadas
Nela tão belas unhas negras pintadas
Com a garrafa à mão
À minha frente sentada as pernas cruzadas
Sacando com os dentes a rolha da garrafa;
Chega o vagabundo e diz:
-Ei, amiga, me dá um gole desse vinho
Com desdém ela responde:
Não sou tua amiga
Não te conheço, lesado
Sai da minha cola
Vaza fora, seu otário
Tira o olho de cima de mim
E a sede da minha bebida
E cospe,
No rosto o riso de uma sarcástica cicatriz.
Ela bebe direto no gargalo uma funda golada
Tira a roupa o fio dental vermelho
E bebe outro longo gole no gargalo
Uma talagada do vinho ácido e barato.
E ao lado da cadeira dela
Aos pés dela um animal deitado,
Pergunto se é macho
Ela diz não, é uma cadela,
Eu digo, claro, é linda
É, ela é linda, a garota que bebe vinho no gargalo,
Com sua cadela branca perambulando os becos da cidade.
A garota é mesmo escolada
Sabe da rima o verso certo
Sempre interada do processo
Do presente do futuro do pretérito
Perfeito ou imperfeito o gesto
Sabe dizer com perfeição um "foda-se!"
E com elegância conjugar o verbo foder.
Mas eu não quero ouvir a história dela;
Ela poderá chorar e urrar
Talvez uma lembrança que lhe traga muita dor
Ou alguma coisa vista que ainda lhe faz tremer só recordar
Tantos anos depois
Ela me diz
A vida girando rápida nas retinas azuladas.
Ela diz não ter de que se queixar
Que a vida é uma coisa simples e bela
Como as flores, as cartas e as libélulas
Sim, ela diz, dando outra golada no gargalo
A vida é boa e bela,
De leve os dedos cariciando a cadela.
Então concordo com ela
E bebo um gole do seu vinho.
No gargalo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário